O crime do açougueiro

Mário Prata

Quem me contou essa história foi o Mário Palmério. O Mário que morreu há pouco tempo, o Mário igualmente lá de Uberaba, Minas.

Depois de descrever o Chapadão do Bugre lá na Vila dos Confins, depois de virar deputado federal e depois de entrar para a Academia Brasileira de Letras, largou tudo, comprou um barco e uma índia e ficou uns oito anos subindo e descendo o Amazonas, pensando e fazendo bobagens (no bom sentido, como deve ser toda bobagem).

Parava naquelas cidadezinhas, ficava uns dias, ouvia uns casos. Nunca me disse se pretendia escrever um livro tipo Igarapé do Bugre ou Vila dos Manaus. Mas contava - oralmente - casos amazonenses.

Um dia, deitado na sua rede na fazenda lá em Uberaba, relaxava seu corpo alto, suas melenas brancas e longas e coçava o saco. O Mário adorava andar nu. Seu lado índio. Acho que ele tinha um pé na selva amazônica. O caso que ele contou:

A cidade do interior do Amazonas era pequena. Uns cinco mil habitantes. Tinha lá um açougueiro chamado Lázaro (mais pra frente você irá sentir a ironia do nome). Pelo menos o ficcionista disse que ele se chamava Lázaro. E o Lázaro tinha uma bela mulher chamada Maria. Sim, chamada, porque diz o Mário que era chamar que ela ia. Danada, a Maria.

Eis que Maria arrumou um amante. Um amante fixo. O nome dele era Ovídio e vivia da pesca. Sem trocadilho nenhum, Ovídio pescou Maria e a envolveu em sua rede.

Cidade pequena, alguém foi contar para o Lázaro. Até que um dia Ovídio entrou no açougue. O Lázaro pegou aquela machadinha do ofício e, enquanto ia desferindo violentos golpes no tronco de cortar carne, ia dizendo, pelas palavras mineiras do Mário Palmério:

- Olha, moço: minha Maria não é peixe para seu anzol. Você vai pescar noutra freguesia. Aliás, se aceita um convite, pegue seu barco e suma da cidade (passava a lima no corte do machado e desferia mais golpes). Ou então, pare com essas suas andanças que a Maria prefere carne a peixe.

Ovídio ouvia tudo de olho na machadinha. Diz o Mário que chegou a pedir desculpas e que ele não se preocupasse que ele ia sumir do pedaço.

Ovídio não se mudou, mas deixou a Maria que voltou a viver numa boa com o marido. Mas, com o passar do tempo, as carnes de Maria voltaram para a cabeça do peixeiro amante. E Ovídio voltou ao pedaço, já se esquecendo da machadinha.

Novamente o alcoviteiro foi aos ouvidos do Lázaro. Era de manhã e o sangue subiu pra cabeça do homem. Pegou a machadinha e partiu célere para a casa do comborço. Ao atravessar a pracinha, ouviu a notícia. Seu inimigo havia morrido de madrugada. Ataque do coração.

Voltou para o serviço. Aquele desgraçado estava morto, não ia mais incomodar sua mulher. Mas a necessidade da vingança não saía da cabeça dele. Pegou de novo a machadinha e foi até o necrotério. Ia decepar a cabeça do Ovídio, mesmo morto. Ia mostrar para a cidadezinha quem é que era o dono da Maria.

Chegou lá e foi fácil achar o corpo do defunto que aguardava a autópsia. Ficou olhando para aquele corpo frio, aquele amontoado de carne. Não satisfeito em cortar a cabeça do sujeito, antes, porém, resolveu dar uma surra no morto.

Segurou o pescoço do corpo inerte e começou a bater a cabeça dele na laje fria. Sacudindo, xingando, com ódio.

E agora, acredite quem quiser: com aquelas porradas todas o Ovídio voltou à vida. Lázaro ressuscitou o morto. Depois teríamos a explicação médica: havia sido um caso de catalepsia.

O morto acordou apanhando do marido e saiu por uma porta, nu, correndo. Lázaro, com a machadinha na mão, saiu pela outra porta correndo mais ainda e nunca mais foi visto na Amazônia.

Ovídio está casado com Maria, vivem muito bem. E tiveram um filho que se chama Lázaro.

E, me disse o Mário Palmério, a Maria anda toda ressabiada pelo Agenor, o novo açougueiro.

 

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 26 de janeiro de 2000
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