A partilha do uísque

Moacir Werneck de Castro


Embaixador Mário Palmério e General Alfredo Stroessner em noite comemorativa, em Assunção/Paraguai, entre 1962 e 1964.

O acadêmico Mário Palmério, fazendeiro em Minas e navegador na Amazônia, é o tipo do brasileiro cordial. Não admira que, como embaixador em Assunção, no governo João Goulart, tenha sido facilmente cativado pela amabilidade com que o ditador Alfredo Stroessner o tratou. Tivesse servido em Uganda, poderia, quem sabe, achar graça em Idi Amin. Agora, ao visitar Stroessner no confortável refúgio da residência oficial de Itumbiara, regalou-o com mangas e docinhos caseiros, "para adoçar a vida dele no exílio", e lhe ofereceu novo abrigo numa fazenda sua, em Uberaba.

Conheci Mário Palmério lá pelo final dos anos 60, em casa de Darwin Brandão. É uma prosa encantadora, a do autor de Vila dos Confins e Chapadão do Bugre. Naquela noite, contou uma história inesquecível. Creio que já a passei adiante, sem revelar a autoria. Hoje, entretanto, a indiscrição me faz cócegas, e já não consigo resistir.

Recordando sua missão diplomática no Paraguai, o escritor mineiro nos deliciou com a parábola seguinte. No começo, o general n° 1 do país controlava todo o rendoso contrabando de uísque, embolsando sozinho os lucros. Esse monopólio deu origem a um forte descontentamento de parte do general n° 2, que comandava o mais poderoso corpo do exército guarani. Então o general n° 1 resolveu, cautamente, abrir mão de uma parcela do seu negócio, passando ao n° 2 o direito de vender algumas marcas do scoth.

Acontece que o n°3 e o n°4, depois o n°5, e assim por diante, uma dúzia de generais, foram ficando enciumados. "Ou todos se locupletam, ou haja moralidade", disseram, lembrando um ditado brasileiro. Desse modo, o contrabando do precioso néctar escocês (na maior parte destinado ao Brasil) começou a ser loteado progressivamente.

Foi uma partilha muito engenhosa, prosseguia o nosso ex-embaixador. Fez-se por marcas. Assim, a um general coube o blended-whisky John Dewar, que incluía o standard White Label e o premium Ancestor; a outro, o Johny Walker e o Black Label; a um terceiro o Black & White e o Buchanan's. Conforme a destilaria cujo produto lhes era destinado, os bravos comandantes militares ganhavam apelidos: general Haig, general Etiqueta Negra, general Caballo Blanco, general Cutty Sark, etc.

Palmério não identificou esses generais, nem os civis porventura admitidos ao loteamento. Por mera coincidência, o general n°1 do Paraguai, daquele tempo, se chamava Alfredo Stroessner. E o general Andrés Rodriguez despontaria pouco depois como forte candidato ao título de n° 2. Ficamos sem saber quais as marcas de uísque que lhe corresponderam na divisão do mercado negro. Na época, também, o narcotráfico não era o esplêndido negócio dos dias de hoje.

Lamento não ser capaz de reproduzir os saborosíssimos detalhes com que o escritor apimentou sua narrativa, digno material para a ficção de um Augusto Roa Bastos, um Alejo Carpentier ou um Gabriel Garcia Márquez. Poderá, talvez, contar a história ao general Stroessner, se o tiver como hóspede em Uberaba. Os dois certamente darão boas gargalhadas, sob a proteção da Polícia, que andará pelas redondezas, baixando o pau nos abelhudos jornalistas.

Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 16 de dezembro de 1989