"Para velhaco, velhaco e meio"

Em um balanço geral das eleições, Vila dos Confins, de Mário Palmério, reconstrói cultura política do rústico e esquecido "interiorzão" do Brasil

André Azevedo da Fonseca


"Importante, para um político, andar sempre com a memória em dia: guardar o nome do eleitor, o da patroa, se possível até o dos meninos. O pessoal apreciava – sempre era uma prova de atenção, de amizade."

Publicado em 1956 pela editora José Olympio, o romance Vila dos Confins, do escritor, político e educador Mário Palmério (1916-1996), trouxe uma relevante contribuição para a literatura regionalista brasileira. A autenticidade no uso do vocabulário sertanejo, o cuidado na descrição geográfica do cerrado e o verdadeiro conhecimento da alma e do cotidiano do homem interiorano se entrelaçaram em um testemunho legítimo da cultura quase selvagem de povoações esquecidas nos áridos confins do Brasil. "O sol caía de ponta a ponta, brutal. Entorpecia e queimava tudo. A areia era polvilho de espelho socado no pilão. O ar, a gente podia vê-lo mover-se — lesma amarela, quente e pegajosa, a arrastar-se por sobre as ruas e telhados."

Paralelo à exuberância expressionista na descrição do sertão, o autor relatou minúcias das movimentações políticas nas corrutelas recém-emancipadas na região do Triângulo Mineiro, na década de 50. E ele tinha muito a dizer. Palmério foi deputado federal pelo PTB, eleito e reeleito por três mandatos consecutivos (1950-1962), quando então foi nomeado pelo presidente João Goulart para o cargo de embaixador do Brasil no Paraguai — onde permaneceria até o golpe de 1964. Quando publicou Vila dos Confins, já havia cumprido seis anos de mandato. Essa vivência serviu de matéria-prima para muitas anotações originais: o próprio escritor admitiu que a obra "nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance".

A personagem principal de Vila dos Confins é o deputado federal Paulo Santos, um político experiente, mas já cansado daquela vida de disputas partidárias: em um trecho, chega a abandonar a reunião de diretório para se esbaldar em uma delirante pescaria. Mas, a pedido dos companheiros da União Cívica, passa a percorrer o município para articular a candidatura do correligionário João Soares à prefeitura da cidade. Sua estratégia era convencer pessoas influentes do vilarejo a apoiarem a coligação de seu candidato, colocando seus próprios nomes na disputa pelo cargo de vereador. E é aí que a política sertaneja começa a esboçar os primeiros indícios da brutalidade de seu pragmatismo.

Ninguém tinha experiência legislativa, mas isso era o que menos importava: em política, seja lá qual o seu valor, só é respeitado quem ganha — ensinava o deputado. O fazendeiro Neca Lourenço, matuto e bestial, convidado por Paulo Santos a ser candidato a uma vaga na câmara, até que tenta negar: "Me bote num curral, num tronco de castração ou no cabo de um machado que eu não faço feio. (…) Mas não me mande cuidar de política, que um gato morto pendurado pelo rabo num arame de cerca faz mais figura do que eu." Contudo, convencido a muito custo, entusiasma-se a seu jeito e parte para a campanha de rua dizendo que, quando ganhasse a eleição, entraria na vila montado nas costas do candidato adversário, riscando-lhe as virilhas à espora.

Entretanto, como um Maquiavel do sertão, Paulo Santos pondera que só muito antigamente um adversário morria adversário. Naqueles "novos tempos" (estamos nos anos 50), com aquela balbúrdia de partidos políticos, ninguém vencia eleição sem coligação:

Veja como tudo tem mudado: nas eleições passadas, nós nos aliamos aos democratas para vencer os liberais; nas últimas, nos unimos aos liberais para derrotar os democratas; agora, o boato é que os democratas estão se aproximando dos liberais para acabarem com a gente… nessa confusão toda, sobram apenas os mais duros, que ninguém é bobo de fazer casa com pau bichado…

E no cenário de um interior brasileiro ainda predominantemente rural, as primeiras eleições em uma pequena comunidade evidentemente têm suas peculiaridades. Para começar, praticamente toda a população — incluindo candidatos a vereador — é totalmente analfabeta. Aprender a ler? Coisa inútil. Cabo de enxada, foice, machado e laço de couro cru engrossa as mãos — caneta e lápis são ferramentas muito delicadas. A vida é marcar bezerro, curar bicheira, rachar pau de cerca, esticar arame farpado, capinar, colher… E quem perdeu tempo na escola com leitura e escrita, acaba logo se esquecendo do pouco que aprendeu. Daí o trabalhoso serviço dos partidários para ensinar a cada um dos habitantes o passo-a-passo do alistamento eleitoral. O trecho em que Pé-de-Meia – um esforçado secretário de campanha – tenta ajudar o caboclo João Francisco de Oliveira a desenhar sua assinatura para preencher um requerimento é antológico:

"– Me dá licença, seu João." E pega no mãozão cascudo, pesado tal um caminhão de tora. Vai choferando a bicha, para cima e para baixo, caminhando com ela sobre o papel. O rasto fica: primeiro, a foice espigada do jota, depois a laçada bamba do ó; em seguida, mais duas voltas grandes, repassadas e atreladas uma à outra. Mas ainda falta o remate: o urubuzinho do til que Pé-de-Meia fez João Francisco desenhar, bem saliente, por cima do primeiro trecho da tremida assinatura. "– Já varamos um bom eito. Vamos descansar um pouco: falta ainda o Francisco, falta o de Oliveira…"

Mas é na descrição das manobras de Dr. Osmírio e Chico Belo — respectivamente, virtual candidato a deputado estadual e candidato à prefeitura de Vila dos Confins, ambos liberais e adversários do grupo de Paulo Santos — é que Mário Palmério passa a jogar pesado na descrição da política de baixo nível. Enquanto o grupo da União Cívica percorre a região num corpo-a-corpo com lideranças locais, os adversários vão procurar apoio com a cúpula do governo na capital.

O vaidoso e chantagista deputado Cordovil de Azambuja leva os correligionários a uma audiência com o Secretário dos Negócios do Interior, pedindo a mão-forte do governo nas eleições de Vila dos Confins. Seu interesse era popularizar-se na região para faturar eleitores nas próximas eleições à Câmara Federal. Na primeiríssima ponderação do secretário, Azambuja sente-se contrariado, estoura teatralmente, ameaça faltar em um pronunciamento na Assembléia onde fora incumbido de defender uma medida do governo e, segundos depois, bufando pelos corredores, joga sujo: "— Vamos todos para a Assembléia. Mudei de idéia. Vou é modificar o meu discurso, solto umas indiretas. Sou capaz até de dar uma forcinha à oposição...".

Para velhaco, velhaco e meio defendia Osmírio. Em conversas particulares, combina uma coisa com o secretário e outra com o deputado, garantindo apoio de ambos. Tapearia os dois — ficariam queimados com ele, brigariam, mas depois tudo passava. Política era aquilo mesmo... valha quem valha, só é respeitado quem tem poder – não é essa a lição?

Prestígio e vaidade: o sentido do ingresso na vida pública. Palmério mostra como Chico Belo vê com inocente e sincera naturalidade a cultura de auto-favorecimento no exercício do poder. Para a personagem, entrar na política é uma maneira perfeitamente legítima para se dar bem na vida — e ponto! Em vez de sentir-se ofendido, o candidato faz questão de demonstrar admiração a um tal de Paiva, ex-prefeito de Nova Esmeralda — uma cidade vizinha — que soube tão bem aproveitar-se do cargo público para o enriquecimento de sua própria família:

"Falavam dele, mas a verdade é que prefeito nenhum tinha mais prestígio com o pessoal do Governo que o Paiva. Colocou os filhos todos, até gerência da Caixa Econômica arrumou para o genro… Hoje, era o boiadeiro mais forte da zona, com os bancos do Governo escorando os negócios dele…"

Com o apoio do secretário do interior, que libera verba, troca delegado e nomeia novo intendente, os liberais deitam e rolam. Gouveinha — o novo chefe de intendência — era um patético "laranja" cujo ato fora apenas a assinatura tremida no termo de posse e o discursinho na solenidade de transmissão do cargo. "Caísse o Gouveinha na boa vida, tomasse os seus costumeiros pileques — um gambá, o velhote! — pescasse, dormisse o dia todo, mas nada de se envolver com os negócios do município!", ordenam os liberais.

E o lamaçal fica cada vez mais turvo. Dr. Osmírio — que controlava até o juiz — cria novas seções eleitorais para dificultar a fiscalização nos distritos. Candidatos a vereador já registrados pelos unionistas são comprados pelos liberais à última hora. O novo delegado ordena que os policiais revistem compulsoriamente todos os partidários dos adversários em público, constrangendo-os a ponto de quase provocar um tiroteio.

Vendo a situação de seu partido degringolar, Paulo Santos põe em prática um plano mirabolante: simula um atentado — coisa comum naqueles tempos de coronéis e jagunços. Com ajuda do tio, embrenha-se na mata, obstrui a estrada derrubando uma árvore, estaciona o carro e atira várias vezes de carabina contra o painel e a lataria. Entra no automóvel alvejado, corre para a cidade vizinha, aciona a polícia, presta depoimento relatando detalhes da "tocaia" e faz com que o caso alcance proporções nacionais, envolvendo o Governo Federal, repercutindo na imprensa e, evidentemente, constrangendo os liberais — automaticamente acusados de armar o atentado.

Mas no dia da eleição, apesar da presença de forças militares, chamadas para "pacificar" o tumultuado pleito na Vila dos Confins, pipocam tramóias das mais criativas. Os unionistas decidem contratar os serviços de um lendário rábula da região: o Pereirinha — sujeitinho miúdo, míope de meter pena… mas que em uma eleição se agigantava, virava um demônio em forma de gente, impugnando trapaças, armando outras, protestando, recorrendo, conferindo zonas eleitorais… um sucesso!

Mas nem a ginga do rábula Pereirinha consegue driblar duas das mais clássicas trapaças da tradição eleitoral do interior. Uma delas é a compra de votos. Os cabos eleitorais cortavam cédulas em duas, distribuíam uma das metades e prometiam entregar a outra caso o candidato ganhasse. Depois era só emendar o dinheiro. A outra tramóia eram os chamados "fósforos". Tratava-se de cabos eleitorais treinados em passar por cinco, seis, até por mais eleitores diferentes. Um caso que tornara-se clássico na região era o do Doquinha.

O tipo pintara e bordara. Votou, a primeira vez, barbudo, representando o velho Didico, morto havia mais de ano; fez a barba, deixando o bigode, e foi para outra seção votar em nome de um tal de Carmelita, sumido desde meses; tirou o bigode e, com a cara mais limpa e lavada desse mundo, preencheu a falta de outro eleitor; e dizem ainda que votou mais uma vez, de cabelo oxigenado e cortado à escovinha, substituindo um rapazinho alemoado que viera trabalhar, por uns tempos, na montagem da usina elétrica de Santa Rita.

Por todas essas "lições", essa obra que "nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance" oferece uma oportunidade muito interessante para lapidar a imaginação crítica na observação desse tempo de "ânimos escaldantes" que caracterizam as eleições municipais.